Especial Virando o Jogo #08 | Asas que me dei para voar
13 de maio de 2022 - 16:11 #Reportagens #Série Especial #Superação #Virando o Jogo
Ethel de Paula - Repórter Pedro Piúba - Fotos
Com 11 anos de idade, ele era o primogênito de três irmãos quando os pais se separaram e desistiram de criar os filhos, abandonando-os à própria sorte. “Minha irmã e meu irmão foram acolhidos pela minha avó, mas eu acabei indo morar na rua. Subi o Morro Santa Teresinha e comecei a fazer amizade. A vizinhança ficou me dando comida e abrigo. Mas quando não tinha o que comer, ia tirar manga do pé na Beira Mar ou catar casquinha de sorvete do lixo da sorveteria 50 Sabores. Algum tempo depois uma tia se disponibilizou a cuidar de mim. E fiquei morando com ela até o dia em que minha mãe finalmente reapareceu”, relembra Cássio Sinuê Jacinto Lopes, hoje articulador social do projeto Virando o Jogo – Superação.
Aos 26 anos, o jovem que cedo se desafiou a traçar o próprio destino tem orgulho do caminho percorrido dentro do bairro Vicente Pinzon. Lá, ele se tornou o “NegoCassio”, cantor de rap e funk com músicas espalhadas pelas plataformas de streaming e videoclipes estourados no YouTube. “Posso dizer que sou cria de projetos sociais e fui salvo pela música. Desde adolescente passei a entrar em tudo o que é projeto social que apareceu aqui na zona leste. E foi assim que conheci as quatro vertentes do movimento hip hop: rap, grafite, dj e b-boy. Cantar profissionalmente passou a ser meu sonho maior. Aí fui correr atrás, com sangue no olho. Aprendi percussão, dancei em grupo de swingueira e depois disso consegui criar meu próprio projeto social: a Batalha do Mirante, uma batalha improvisada de rimas envolvendo jovens de diferentes comunidades. Ficamos conhecidos, competimos até nacionalmente e a partir daí o sonho foi se tornando realidade”, conta.
Cássio não quis sonhar sozinho. Como cantor de rap e funk, se capitalizou para abrir o próprio estúdio de gravação no bairro, abrindo as portas para jovens artistas vocacionados como ele, mas sem qualquer condição de bancar o mesmo sonho. Foi esse abraço solidário e a vontade de querer dar voz à comunidade que o tornaram referência no Vicente Pinzon, além de natural candidato a articulador social para o Virando o Jogo. “Não vou poupar esforços para inserir o jovem da favela no mercado fonográfico neste momento em que o rap e o trap têm conseguido seu lugar de honra numa indústria que só em 2020 faturou um bilhão”, anuncia, obstinado, o músico com asas tatuadas nas costas que diz ter aprendido uma forma própria de voar, recusando-se a ser “anjo caído”.
No corpo, feito tatuagem, ainda cabem figuras inspiradoras, como o líder negro Dragão do Mar, aquele que se recusou a embarcar escravos no Porto do Mucuripe, tornando o Ceará pioneiro no movimento abolicionista brasileiro. No antebraço, a coruja em meio à paisagem do sertão, ele mesmo explica, é símbolo da sabedoria de quem aprendeu com a vida os altos e baixos da luta pela sobrevivência. Há ainda o rosto de um alienígena com chapéu de couro e uma lamparina para iluminar e guiar as ideias. “Tudo para me lembrar que pareço ser de outro mundo para a sociedade, mas sou antes de tudo preto e nordestino. Com muito orgulho”, afirma o articulador social que estava trabalhando em um supermercado como repositor quando foi convidado a integrar o projeto Virando o Jogo.
Hoje, é o trabalho com carteira assinada como articulador social que o faz ajudar a mãe zeladora a pagar as contas de casa. “Eu sempre quis exatamente ter a oportunidade de trabalhar em um projeto social, unindo minha vocação de artista à formação e capacitação da juventude. E agora posso dizer que me realizo de muitas formas neste trabalho, porque vejo que, além de oportunidade no mercado de trabalho, quem passa pelo Virando o Jogo muda a própria forma de se enxergar na sociedade e passa a se sentir incluído, jogando o jogo mesmo e não ficando à margem dele, sabe?”, observa.
Para Cássio, é a equipe multiprofissional do Projeto, feita inclusive de psicólogos e assistentes sociais, além de instrutores voltados à qualificação profissional, que lhe parece fazer toda a diferença. “Passei por muitos projetos sociais voltados à juventude, mas nunca havia conhecido nenhum que acolhesse o jovem numa dimensão mais ampla, considerando o cotidiano dele, suas vulnerabilidades sociais e também aquelas ligadas às famílias e aos territórios onde vivem. O Virando procura entender como o jovem da favela de fato vive e o que ele passa. Por isso, oferece também acompanhamento psicológico e apoio familiar, algo que considero tão importante quanto a formação profissional, porque são muitos os traumas até ele se sentir capaz de verdade de se inserir na sociedade”, enfatiza Cássio, deixando entrever por último, de uma ponta à outra do peito, a frase bíblica de sua predileção: “mil cairão ao meu lado, dez mil à minha direita, mas eu não serei atingido”.
A virada subjetiva do jogo
Vem do Jardim Iracema a militante de movimentos sociais com cabelos e braços super coloridos que se tornou articuladora social do projeto Virando o Jogo – Superação: Margô Ramos Ferreira, 25, se orgulha em dizer que participou da primeira audiência pública que pautou a hoje mais festejada política pública para as juventudes da periferia implementada pelo Governo do Estado.
Filha de mãe costureira, hoje funcionária de uma rede de supermercados, e pai porteiro, recém-aposentado, Margô, a mais inquieta de cinco irmãos, lembra que ela mesmo nunca havia tido trabalho com carteira assinada antes do Virando o Jogo. “Na verdade, sempre fui artista e militante do movimento estudantil. Vendia minhas pinturas em tela pelas ruas do Benfica e ia me virando com outros bicos. Fui inclusive professora de reforço escolar dentro da favela. E assim terminei o Ensino Médio, sempre estudando em escola pública. Cheguei até a começar um curso superior de licenciatura em Teatro, mas por questão financeira e pelo conservadorismo dos meus pais, que não entendiam direito pra que serviria uma faculdade como aquela, não tive ajuda para as passagens de ônibus e fiquei sem ter como me deslocar até o Pici todos os dias. Aí desisti”, conta, lamentando o sonho interrompido.
Vida que dá voltas. Foi depois da contratação como articuladora social do Virando o Jogo que Margô ganhou respeitabilidade junto à família e viu o “olhar” dos pais mudar sobre a atitude política defendida por ela para garantir a sobrevivência e fazer valer um projeto de vida pouco convencional, atrelado às artes e ao ativismo social. “Tanto dentro como fora de casa, ou seja, no próprio território, passei a ser uma referência, a jovem do projeto Virando o Jogo que desenvolve um trabalho sério e concreto para a melhoria da situação de fragilidade social enfrentada pelos jovens da periferia. Esse reconhecimento me fortaleceu muito e me fez entender na prática o resultado positivo do trabalho de formação cidadã e conscientização política dentro da periferia. Aliás, posso dizer que mais aprendo do que ensino no projeto, o que faz esse trabalho ter muito mais sentido e ganho pra mim”, festeja.
Para ela, é o saber vivenciado que agora mais interessa para seguir adiante em qualquer futura profissão e sobretudo como militante política. “O Virando o Jogo não busca simplesmente dar uma qualificação para o jovem. É um projeto que faz a gente exercitar uma escuta sensível diante de problemas socioeconômicos que também são da ordem do emocional, do modo como o jovem hoje pensa, sente e responde aos muitos desafios que começam em casa, na família, e se estendem até o mercado de trabalho. Por isso há formação cidadã e ação comunitária antes mesmo dos cursos profissionalizantes. É quando o jovem vai traçar um projeto de vida e começar a entender como ele pode interferir para melhorar a sua vida e a da comunidade também. Essa mudança de pensamento, que faz o jovem se entender como cidadão pertencente àquele território, é que é a virada do jogo, eu acho”, conclui Margô.