Especial Virando o Jogo #04 | Ensaio para o futuro

22 de março de 2022 - 11:27 # # # #

Ethel de Paula - Repórter Queiroz Netto - Fotos

Salto alto, blazer, maquiagem. No Centro de Profissionalização Inclusiva para a Pessoa com Deficiência (CEPID) da Barra do Ceará, o encerramento do curso profissionalizante de assistente administrativo levou a turma de alunos e alunas do projeto Virando o Jogo – Superação a encenar uma entrevista para emprego como exercício prévio. Erika Oliveira Lima, 20, fez o papel da recrutadora, com direito a figurino completo e texto decorado na ponta da língua para entrevistar os supostos candidatos a uma vaga de trabalho. Pelo seu “crivo”, passaram desde aquele que esqueceu de apresentar parte da documentação exigida até o que ficou conversando no celular justo na hora do teste, demonstrando desconcentração e desrespeito com os demais envolvidos no processo seletivo. Assim, ela foi eliminando um a um, com as devidas justificativas, até encontrar o candidato ideal para vaga, exaltando suas competências em alto e bom som.

De forma lúdica, exercitaram requisitos e habilidades socioemocionais exigidas pelo mercado que tanto almejam acessar e para o qual tiveram uma capacitação básica através do Virando o Jogo. Antes, também haviam passado por formação cidadã e ação comunitária, acessando noções de direitos humanos e debates sobre temas relevantes, como violência contra a mulher, além de colocarem-se a serviço das comunidades de origem através de projetos sociais e campanhas de doação que podem contemplar desde a distribuição de cestas básicas até a limpeza das praias, manutenção de praças públicas ou cuidado com os animais de rua.

Stefany Ferreira (à esquerda na foto), 16, é da mesma turma de Érika e foi ela a responsável por conceber o roteiro da entrevista encenada e ensaiar o “elenco”. A mãe trabalha como vendedora ambulante, é conhecida no bairro e através de sua rede de relacionamentos é que acabou descobrindo e se inscrevendo no projeto Virando o Jogo. Estava cursando o Ensino Médio regularmente, mas buscava uma oportunidade de emprego depois que viu os pais adoecerem. “Todo lugar que a gente procura trabalho pede experiência prévia, então agora acho que com uma formação profissional no currículo vai ficar mais fácil conseguir. Preciso trabalhar para entrar numa faculdade, meu sonho é me formar em Psicologia”, diz.

Na mesma sala de aula, Estefânia da Silva, 16, conta que desistiu do “bico” para participar do projeto Virando o Jogo. “Foi um investimento na minha formação e a intenção é tentar uma vaga na seleção do Jovem Aprendiz. Sonho com o primeiro emprego”, adianta a estudante do Ensino Médio decidida a ajudar o pai, que trabalha como serviços gerais do Fórum Clóvis Beviláqua, a pagar as despesas de uma casa com seis pessoas, algo que não lhe impede de sonhar com uma vida artística: a moça de cabelos vermelhos encaracolados quer ter formação superior em dança e abrir sua própria escola. “Sou louca por arte. Dançar, atuar, pintar… Aqui no projeto Virando o Jogo a gente tem oportunidade de escolher um esporte para praticar enquanto durar a formação profissional. Escolhi dança urbana. E faço curso de modelo também. Mas sei que viver de arte é difícil então por enquanto fica no ar…”, suspira.

Criada pela avó, “porque a mãe era muito nova” quando a teve, Ana Vitória Rodrigues, 18, também tem pressa em conquistar sua autonomia financeira e a meta é chegar a atuar junto a Polícia Rodoviária Federal. “Tive uma breve experiencia de trabalho ajudando uma amiga que uma loja de estofados, fazendo atendimento via redes sociais e presencial. Me apaixonei pelo ramo e aqui no curso de Assistente Administrativo entendi o que é empreendedorismo. Pode ser que a partir de agora possa trabalhar com isso, sem precisar deixar a escola porque ainda estou concluindo o Ensino Médio e pretendo fazer concurso mais adiante para poder viabilizar os outros sonhos, né?”, vislumbra a jovem cuja família é predominantemente de serventes e faxineiras.

O colega de classe Credinaldo Vieira da Silva Filho (ao fundo na imagem de abertura), 20, também não se furta a sonhar alto. Quer ter a própria empresa. “Sei que preciso começar de baixo, com uma bodega em casa mesmo. Mas quero ser aquele vendedor que saber vender até uma caneta sem ponta. Vim para a formação profissional do Virando o Jogo porque sabia que aqui eu iria aprender sobre planejamento e como me expressar melhor. Moro com meus pais que são comerciantes e vendem roupas íntimas. A situação financeira em casa não é ruim, eu ajudo no comércio e eles me apoiam muito nos estudos porque sabem que sonho em cursar direito e passar no concurso para a Polícia Rodoviária Federal. Vou conseguir”, garante, tenaz.

Aqui ninguém desiste

Para Ana Larissa Chaves, 18, o projeto Virando o Jogo e as aulas de fotografia no SENAC são horas de descanso, um misto de alento e alívio. “Quando estou aqui fotografando esqueço lá de casa”, confessa a moça que teve que interromper o Ensino Médio quando precisou procurar trabalho para contribuir com as despesas da casa da tia que vive de benefício social e precisa sustentar mais três filhos. Com a mãe, já não pode morar, devido às refregas com o padrasto, que nunca tratou bem a ambas, na opinião de Larissa. Como nunca conheceu o próprio pai, contava até bem pouco tempo com a guarida da avó, até que a guerra do tráfico atingiu em cheio sua família, vitimando quem lhe dava alguma proteção.

“Quando terminar a capacitação profissional vou ter que arrumar um emprego, se não fico até sem ter aonde morar. Eu dava parte da ajuda de custo que ganho no projeto para minha tia, mas como já estamos no finzinho do curso não vou ter mais como contribuir. Minha cabeça tá dando um nó, mas me sinto tão bem em ter vivido esses meses aprendendo coisas novas e que nunca imaginei serem pra mim, como a fotografia, que prefiro só acreditar que vou conseguir me virar e até realizar um sonho que guardei: a de me formar para ser veterinária”, consola-se a também fã de futebol que no projeto Virando o Jogo teve aulas de judô, esporte que igualmente não conhecia. “Amei também descobrir o que é e como funciona um ecoponto”, emenda, empolgada com a fase anterior onde a turma se envolveu com ações comunitárias no bairro periférico onde mora.

Das aulas de fotografia à cozinha experimental do SENAC. Aos 18 anos, Adins Barbosa da Silva Neto, que prefere se apresentar como Ádila, também é pura empolgação nos últimos dias do processo de capacitação como salgadeiro. Ele que, com 14 anos, se viu obrigado a sair de casa por não saber lidar com uma mãe alcoólatra e hoje vende bombons e limpa vidro de carro nos semáforos das periferias da cidade. “O projeto Virando o Jogo foi a minha salvação. Com o dinheiro da bolsa e o que apuro no sinal deu pra alugar até um quartinho”, revela.

O desafio de suar a camisa para sobreviver acaba de ganhar força: tão logo tenha em mãos a certificação de salgadeiro, Ádila quer bater de porta em porta, entre restaurantes, lanchonetes e padarias do bairro onde mora, para tentar viver do que aprendeu no projeto Virando o Jogo. “Meu sonho sempre foi terminar os estudos, por isso me agarrei ao EJA e sempre quero correr atrás de outros cursos como esses do projeto Virando o Jogo. Mas agora preciso arrumar um emprego, porque quero um dia ainda ter meu próprio negócio e ser respeitado pelo que sei fazer e também por ser quem eu sou. Nunca me vi como homem. Só que não dizia nada. Tinha medo da minha mãe, que hoje me aceita. E aí passei a me vestir de mulher. Mas só em casa. Por causa do preconceito mesmo. Já vi muitos morrerem só porque são LGBTs ou negros. Mas quero tentar superar tanto problema. O projeto trouxe isso pra mim: voltar a pensar em ter um trabalho e uma vida digna”, afirma, esperançosa.